sábado, 28 de agosto de 2010

A morte nos tempos de infância


"Anjo" Fotodigital - Canon Powershot A 560- Flavio Pettinichi - 2009

E a morte era uma sombra distante que não fazia parte da nossa paisagem naqueles anos de luz e alegria.
Lembro bem à hora onde a noticia chegou, o José tinha morto, eu não conhecia muito bem ele, era um vizinho da nossa idade, mas não era dos aventureiros que a gente juntava para explorar os caminhos verdes da infância. Para nós , a morte ,era mais um acontecimento de descobertas sem nenhuma dor nem agonia presente.
E fomos conferir de que se tratava, pois tínhamos visto algumas lágrimas caindo do rosto da mãe dele e da nossa também, não é que as mesmas fossem estranhas para mim, estávamos acostumando, com as da minha mãe, a lidar com algo que naquelas terras não tinha definição e que anos depois numa outra geografia eu viria a esclarecer, era a Saudade, palavra esta que reconstrói instantes de vida e quase sempre paixão.
Na casa do Jose estava todo normal, algumas crianças iam e vinham como querendo encontrar alguma explicação antinatural dos fatos e não foi diferente para mim. Vi a mãe do defunto dando algumas ordens, uma avô ocupada em acabar de limpar a sala, um pai assinando alguns papeis e uma caixa branca com alças.
Perguntei de imediato o que era isso e alguém com muita calma me explicou que era o berço aonde os anjos iam a dormir a sua eternidade.
Claro que para mim não ficou muito claro esse assunto da eternidade.
Minha mãe nunca me deixaria dormir a minha eternidade numa caixa com alças, ela sabia que eu poderia ate me deitar um pouco embaixo do pé de laranjas ou ficar pulando tentar arrancar uvas do pomar do lado, pois para mim isso era a eternidade, as cores dos frutos, o cheiro inconfundível da uva madura a flor da laranja que nos chamávamos de Azaar, nem sei por que, mas esse era o nome.
A eternidade era o instante sublime do beijo do nosso pai quando chegava de viagem, a lua aparecendo dentre os trigais que se perdiam das nossas vistas e nos tínhamos denominado de” terra do além”. Como eu ia querer dormir nesses momentos?
Depois eu fui vendo a situação , não com curiosidade , era um misto de intensidade e letargia que acabaria num desfecho do qual não estávamos preparados para enfrentar, passarem-se algumas horas, intermináveis, a caixa continuava vazia no meio as austeridade da sala , onde uma foto pintada à mão já tinha uma rosa amarrada com barbante.
Chegou a noite e não se falou no assunto, a morte sempre foi motivo de silêncio dentre os adultos e para nós nem sequer o silêncio tinha significado concreto, fomos dormir sabendo que amanhã teríamos, mas algumas eternidades pela frente.
No outro dia fomos acordados com sorrisos calmos e muitas mãos que acariciavam o nosso rosto, vestiram-nos com a roupa mais limpa que tínhamos,limpa falei, pois “nova” há muito tempo era uma palavra olvidada.
Saímos de casa em silêncio, pois assim tinham nos recomendado, a pequena rua do povoado parecia mais pequena ainda e o sol da metade da manhã não chegava a incomodar o canto dos pássaros de um abril tênue de cores e mistérios.
Chegamos lá e a caixa já estava fechada , algumas mulheres choravam em um estado de ternura que se confundia com o branco absoluto da caixa do sono eterno, outras não entanto rasgavam o letargo geográfico com um pranto de infinita agonia.
Cada um de nós pegou uma alça e carregamos a caixa ate o cemitério, que até então eu nem sabia da sua existência , pausadamente tínhamos que parar cada vez que alguém chegava perto dela e proferia uma oração entre dentes e soluços, assim fomos ate achar a cova rasa onde seriam depositados os anjos e suas eternidades, seguramente alguma uva madura estaria guardada nessa caixa .
A partir desse dia tive a certeza que toda eternidade se vivencia de olhos bem abertos, nunca gostei de lugares pequenos, muito menos com alças.

Flavio Pettinichi – 27 – 08- 10

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