sábado, 9 de junho de 2012

Amor, Verbo Subversivo

Antes do homem foi o caos, depois veio a consciência do caos e foi onde a história desandou.Antes do Homem o amor era matéria concreta,depois veio a explicação do amor e ai o assunto voltou a desandar.

Lembro-me de uma menina, empregada doméstica que morava na frente da minha casa, quando eu tinha apenas 15 anos. Era ela de uma beleza impar ou, ao menos, para mim era. Beleza de índia das geográficas latitudes do sul, beleza de ventos e frios que esticam a pele e os olhos, deixando só uma sensação de mistério milenar para quem observa com cuidado.

Eu a observava cada manhã, cada tarde, e cada fim de noite, seu passo rápido na parte da manhã, nos afazeres  diários da casa da frente; seu andar distante na hora da tarde, passando roupa na janela que abria desejos para minha pouca noção do desejo; seu corpo nu e lânguido  nas últimas horas da noite sempre coberto pela inocência infame de quem deve alguma coisa , e eu observava todos estes movimentos com meticulosa esperança de um dia chegar até lá.

Eu não sabia quem eram seus patrões, a casa era uma casa grande, mas não era uma mansão, o bairro era a fronteira entre a civilização oprimida da época e a vila militar e eu percebi, um dia, que esta casa estava dentro da vila, normal para um rapaz que só entendia a vida como uma urgência de vivências e prazerese não com os medos que assolavam a realidade.

O tempo foi passando e o desejo aumentando, algo dizia que o dela também, pois já não éramos desconhecidos um do outro, olhares que se encontram numa esquina, tirar o lixo pra rua na mesma hora, a coincidência de pegar o mesmo ônibus no seu único dia de folga e um toque imperceptível das nossas mãos na fila do mercado. Tudo isso tinha criado uma cumplicidade clandestina em que a contrassenha ainda teríamos que descobrir.

Uma noite eu vi um movimento diferente na casa, carros escuros e homens vestidos de acordo com a situação de escuridão movimentavam-se nervosos pelas ruas da vila,foram emborajunto com o dono da casa e a sua esposa, então aconteceu: a contrassenha foi uma janela aberta e um corpo iluminado apenas pela chama de uma vela vermelha.

Corri pela infinita rua que me separava da vila,corri sem guardar ar nos meus pulmões e voei até transpor a janela dos sonhos e desejos.Estava ali, nua de alma aberta, nua de todo medo, nua de toda infâmia e foi um resplendor o nosso beijo.

O fim da chama acordou os nossos sonhos e anunciava o nascimento de mais um dia na cidade da fúria, o nascimento de mais um dia na agonia da espera até a próxima janela aberta aos mistérios.

Assim foi durante um bom tempo e eu fui sabendo quem era patrão dela, dono da casa da vila militar, e eu fui lendo os jornais da cidade sitiada pelo espanto, e fui conhecendo os mortos que aos milhares iam se transformando em desaparecidos vivos nas memórias do que sofreme fui contando para ela, como quem conta um conto de fadas , ela escutava desde seus olhos de distância e me beijava a cada palavra que ainda não era clara.

Aconteceu um diade eu ler o jornal e ver um rosto ensanguentado estampado na manchete que dizia, “terrorista é morta em enfrentamento com as forças da ordem Pública” , achei normal a manchete ,”não somos unidos pelo amor , porém  pelo espanto”, diria J. Luis Borges.

Algo me pareceu familiar naquele rosto, mas estava tão desfigurado...só os olhos estavam claros, tão claros como os rios que baixam das montanhas do sul, tão claros como as extensões patagônicas , tão claros como o desejo de amar. Então vi o olhar de distâncias que tantas vezes eu tinha olhado até me perder na sua geografia carnal.

No outro dia li no jornal a manchete que dizia:“ explode casa da vila militar, não há sobreviventes.“

Flavio Pettinichi – 09- 06- 2012