Amor, Verbo Subversivo
Antes do homem foi o caos, depois veio a consciência do caos
e foi onde a história desandou.Antes do Homem o amor era matéria
concreta,depois veio a explicação do amor e ai o assunto voltou a desandar.
Lembro-me de uma menina, empregada doméstica que morava na
frente da minha casa, quando eu tinha apenas 15 anos. Era
ela de uma beleza impar ou, ao menos, para mim era. Beleza de índia das
geográficas latitudes do sul, beleza de ventos e frios que esticam a pele e os
olhos, deixando só uma sensação de mistério milenar para quem observa com
cuidado.
Eu a observava cada manhã, cada tarde, e cada fim de noite,
seu passo rápido na parte da manhã, nos afazeres diários da casa da frente; seu andar distante
na hora da tarde, passando roupa na janela que abria desejos para minha pouca
noção do desejo; seu corpo nu e lânguido
nas últimas horas da noite sempre coberto pela inocência infame de quem
deve alguma coisa , e eu observava todos estes movimentos com meticulosa
esperança de um dia chegar até lá.
Eu não sabia quem eram seus patrões, a casa era uma casa
grande, mas não era uma mansão, o bairro era a fronteira entre a civilização
oprimida da época e a vila militar e eu percebi, um dia, que esta casa estava
dentro da vila, normal para um rapaz que só entendia a vida como uma urgência
de vivências e prazerese não com os medos que assolavam a realidade.
O tempo foi passando e o desejo aumentando, algo dizia que o
dela também, pois já não éramos desconhecidos um do outro, olhares que se encontram
numa esquina, tirar o lixo pra rua na mesma hora, a coincidência de pegar o
mesmo ônibus no seu único dia de folga e um toque imperceptível das nossas mãos
na fila do mercado. Tudo isso tinha criado uma cumplicidade clandestina em que
a contrassenha ainda teríamos que descobrir.
Uma noite eu vi um movimento diferente na casa, carros escuros
e homens vestidos de acordo com a situação de escuridão movimentavam-se
nervosos pelas ruas da vila,foram emborajunto com o dono da casa e a sua
esposa, então aconteceu: a contrassenha foi uma janela aberta e um corpo
iluminado apenas pela chama de uma vela vermelha.
Corri pela infinita rua que me separava da vila,corri sem
guardar ar nos meus pulmões e voei até transpor a janela dos sonhos e
desejos.Estava ali, nua de alma aberta, nua de todo medo, nua de toda infâmia e
foi um resplendor o nosso beijo.
O fim da chama acordou os nossos sonhos e anunciava o
nascimento de mais um dia na cidade da fúria, o nascimento de mais um dia na
agonia da espera até a próxima janela aberta aos mistérios.
Assim foi durante um bom tempo e eu fui sabendo quem era
patrão dela, dono da casa da vila militar, e eu fui lendo os jornais da cidade
sitiada pelo espanto, e fui conhecendo os mortos que aos milhares iam se
transformando em desaparecidos vivos nas memórias do que sofreme fui contando
para ela, como quem conta um conto de fadas , ela escutava desde seus olhos de
distância e me beijava a cada palavra que ainda não era clara.
Aconteceu um diade eu ler o jornal e ver um rosto ensanguentado
estampado na manchete que dizia, “terrorista é morta em enfrentamento com as
forças da ordem Pública” , achei normal a manchete ,”não somos unidos pelo amor
, porém pelo espanto”, diria J. Luis
Borges.
Algo me pareceu familiar naquele rosto, mas estava tão
desfigurado...só os olhos estavam claros, tão claros como os rios que baixam
das montanhas do sul, tão claros como as extensões patagônicas , tão claros
como o desejo de amar. Então vi o olhar de distâncias que tantas vezes eu tinha
olhado até me perder na sua geografia carnal.
No outro dia li no jornal a manchete que dizia:“ explode
casa da vila militar, não há sobreviventes.“
Flavio Pettinichi – 09- 06- 2012